Por Washington Novaes
A primeira manchete de jornal escrita pelo autor destas linhas na então Folha da Manhã, nos idos de 1958, dizia: "Assume
proporções de catástrofe na Paraíba a seca que assola todo o Nordeste". Mudou o estilo, passou-se mais de meio século, não mudou a realidade. Na próxima segunda-feira [16/8], em Fortaleza, a Organização das Nações Unidas lançará a Década da ONU sobre Desertos e de Combate à Desertificação, com o propósito de enfrentar o drama em mais de cem países e lançar um alerta sobre as "dimensões alarmantes" da questão.
De fato, segundo a ONU, um terço da superfície do planeta, onde vivem 2,6 bilhões de pessoas, enfrenta o problema, em algum grau. Na região subsaariana, por exemplo, a degradação nos vários países varia de 20% a 50% do território e atinge 200 milhões de pessoas. Na Ásia e na América Latina, são 357 milhões de hectares afetados, 2,7 bilhões de toneladas de solo perdidas a cada ano. No Brasil, mais de 1 milhão de quilômetros quadrados, do Nordeste a Minas Gerais e Espírito Santo, 15 milhões de pessoas já atingidas diretamente, perdas de US$ 5 bilhões por ano. Se a temperatura da Terra subir mais que 2 graus, alerta a ONU, pode pôr em risco um terço da economia.
Uso intensivo
Em artigo recente neste espaço (22/1), já foram analisados muitos ângulos da parte que cabe ao Brasil no drama, com áreas em torno de 1 milhão de quilômetros quadrados suscetíveis de desertificação (quase 100 mil km2 já em processo), 1.482 municípios, 15 milhões de pessoas. Algumas dessas áreas – Gilbués (PI), Irauçuba (CE), Cabrobó (PE) e Seridó (RN) – "já podem ser consideradas desertos", segundo o meteorologista Humberto Barbosa (Portal do Meio Ambiente, 9/8); "e, pior, estão se expandindo". A Bahia tem em áreas problemáticas 289 municípios, 86,8% do território do Estado, onde vivem 3,7 milhões de pessoas. E nem é só no Semi-Árido. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, 40% das áreas suscetíveis estão no Cerrado (entre elas, o paradisíaco Jalapão) e na fronteira gaúcha, na região de Alegrete. Até a região das nascentes do Rio Araguaia está ameaçada, com mais de 20 voçorocas de quilômetros de extensão.
Segundo a Fundação Oswaldo Cruz e a Universidade Federal de Minas Gerais, 1% do Nordeste, pelo menos, está sob risco alto de desertificação, por causa de mudanças climáticas. Já o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Laboratório de Meteorologia de Pernambuco dizem que as temperaturas médias fora do litoral nordestino estão aumentando rapidamente, com estiagens mais longas, chuvas mais intensas e mais rápidas, ar mais seco. Em Vitória de Santo Antão, por exemplo, em 40 anos a média das máximas subiu 3,5 graus (para 35°), enquanto a média mundial aumentava 0,4 grau. Por isso tudo, o Ministério do Meio Ambiente e o Inpe assinaram esta semana acordo para a elaboração do Sistema de Alerta Precoce de Secas e Desertificação, que pode antecipar situações problemáticas e providências cabíveis, partindo de dados meteorológicos e imagens de satélites. O diretor do Inpe, Gilberto Câmara, afirmou na ocasião que "o mundo vive uma tragédia anunciada". Na seca, 60% das chuvas na região caem em um mês; 30% em um dia.
A Caatinga já perdeu a vegetação em quase 50% de sua área total. Entre 2002 e 2008 foram 16.576 quilômetros quadrados, mais de 2,7 mil por ano. E só tem 7% do território em áreas protegidas, das quais apenas 2% com proteção integral. Por isso, muito terá de ser feito para tentar reverter o quadro. Influir no modelo energético, por exemplo, já que a lenha ainda responde por 40% da energia, somados o consumo no pólo gesseiro de Araripe (1 milhão de metros cúbicos anuais de lenha, para fabricar 1,3 milhão de toneladas de produtos) e o consumo nas residências. Além do desmatamento, contribuem para a desertificação as queimadas, o "extrativismo desenfreado", o uso intensivo do solo.
Patrimônios nacionais
Até aqui, muitas das propostas de "solução" se têm mostrado ineficazes ou até contraproducentes, embora mobilizando recursos públicos consideráveis. Nos açudes nordestinos, por exemplo, acumulam-se 37 bilhões de metros cúbicos de água, equivalentes a um terço do que o Rio São Francisco despeja no mar por ano – e com alto nível de evaporação. Mas não há uma rede de distribuição. Perímetros irrigados são outro exemplo de ineficácia. Segundo o Instituto Nacional do Semi-Árido, só 2% das terras, ali, podem receber sistemas de irrigação. Ainda assim, mais de metade da água transposta do Rio São Francisco se destina a projetos de irrigação (embora o próprio Ibama, que licenciou a obra, tenha advertido que a maior parte da água irá para terras já em processo de erosão ou desertificação).
Como já se escreveu aqui tantas vezes, o pensamento moderno e realista sugere que se mudem as estratégias, que se parta para a "convivência com o Semi-Árido", em lugar de tentar modificá-lo, tarefa impossível. Que se adotem soluções como as mais de 300 mil cisternas de placa já instaladas pela Articulação do Semi-Árido e outras instituições, que recolhem água da chuva e abastecem as famílias durante a estiagem. Como as mais de 4 mil cisternas de produção, como as barragens subterrâneas. A Embrapa sugere ênfase na pecuária leiteira, na vinicultura, na oleicultura, na fruticultura irrigada.
É preciso ter urgência. Este ano, a estiagem já levou à perda de 70% da safra em Picos (PI). Entre janeiro e maio, as chuvas no Ceará estiveram 53% abaixo da média. A "seca" verde atingiu 63 municípios cearenses.
O Ministério do Meio Ambiente espera ver criado por decreto federal o Fundo da Caatinga, a ser administrado pelo Banco do Nordeste. O Senado aprovou a inclusão da Caatinga (e do Cerrado) entre os patrimônios nacionais definidos pelo artigo 225, parágrafo 4.a, da Constituição. Ainda falta a aprovação da Câmara dos Deputados para a proposta, que tramita há mais de 20 anos. É preciso correr.
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