
"A produção intelectual antigolpe está crescendo. Pode-se dizer que já surgiu
uma escola literária, acadêmica, científica, estética, contra o golpe, e
seguramente reúne bem mais representantes da inteligentsia nacional do que a
turma que defendeu o impeachment", diz Miguel do Rosário, editor do Cafezinho;
ele aponta ainda um comentário de Pepe Escobar, um dos principais
correspondentes internacionais brasileiros, sobre a força da mídia independente
no País
Por Miguel do Rosário, editor-chefe do Cafezinho
A leitura do livro A Radiografia do Golpe, de Jesse Souza, me deixou mais
tranquilo em relação às perspectivas do golpe. Agora eu sei que ele será
derrotado.
A produção intelectual antigolpe está crescendo. Pode-se dizer que já surgiu
uma escola literária, acadêmica, científica, estética, contra o golpe, e
seguramente reúne bem mais representantes da inteligentsia nacional do que a
turma que defendeu o impeachment.
As batalhas contra o impeachment já haviam mostrado isso. Os golpistas
conseguiam, após meses de organização, trazer gente às ruas, com imenso apoio da
mídia, simpatia da polícia e dos governos. Até a catraca do metrô era liberada
em São Paulo. A Fiesp distribuía
filet mignon aos participantes.
A esquerda, por outro lado, não só também conseguiu fazer grandes
manifestações (sem ajuda da mídia), como fez uma quantidade muito maior delas. E
não só manifestações: debates. Uma quantidade notável de debates, eventos e
encontros de todo o tipo foram realizados com o escopo de resistir ao golpe. A
mídia teve um trabalho monstruoso para esconder tudo isso. Mas a história não o
fará.
Em Belo Horizonte, no ano passado, houve um encontro de blogueiros que reuniu
milhares de pessoas. A direita não tem massa crítica para chegar perto disso.
É curioso que a Folha tenha, num editorial, mencionado fascistas nas marchas
contra o golpe, porque havia meia dúzia de encapuzados - posteriormente
disciplinados por sindicalistas, que sabem muito bem que a tática de violência
acaba sobrando é para o próprio militante, já que o mascarado em geral consegue
escapulir rápido.
Nas marchas coxinhas, todavia, víamos centenas, milhares de pessoas portando
faixas pedindo intervenção militar, fazendo discursos de ódio, empunhando
cartazes grotescamente fascistas como aqueles que lamentavam que a ditadura
militar não houvesse matado todos os militantes de esquerda, e a Folha chama a
manifestação da esquerda de fascista.
Eu li um post ontem no blog do Nassif interessante, em que ele fala da
necessidade histórica dos acontecimentos, inclusive as tragédias políticas que
vivemos no Brasil. O golpe tinha de acontecer, porque é ele quem deflagrará uma
série de novas energias de resistência, que, de outra maneira, permaneceriam
escondidas por muitos anos.
O golpe nos faz também perdoar, em parte, os erros do PT e do governo. Não
por achá-los menores, ou entender que não é o momento de autocrítica. Ao
contrário, acho que o melhor momento para autocrítica é sempre o agora, e
considero a autocrítica, quando sincera, criativa, arrojada, uma excelente
ferramenta de propaganda para qualquer organização política. Tenho visto, no PT,
após tudo que passou, ainda o mesmo tolo pavor pela crítica, pela autocrítica,
como se isso fosse prejudicar o partido.
Perdoamos os erros do PT e do governo porque agora ficou bastante claro a sua
fragilidade, sobretudo diante dessas poderosas e diabólicas máquinas da mídia e
dos aparatos jurídico-policiais. Às vezes, vemos críticas dizendo que o PT não
mudou a cultura jurídica punitivista no país. De fato, muita coisa podia ser
feita. Mas achar que um partido ainda tão novo, e que já nasceu criminalizado
pelos órgãos do Estado e pela mídia, teria poder de provocar mudanças efetivas
em estruturas e superestruturas seculares, é ingenuidade. E nem é questão de
tempo. Às vezes, um governo pode mudar uma cultura política em uma gestão ou
duas, mas é preciso que haja uma atmosfera propícia a isso. No Brasil, nunca
houve essa atmosfera. Esses últimos 13 anos de governo foram uma sucessão
ininterrupta de ataques: 13 anos de massacre diário, contínuo, brutal, da mídia
contra o governo.
A criminalização do PT e de Lula, como se vê na Lava Jato, precisa criar uma
imagem de poderio absoluto em torno deles que eles nunca tiveram. Esse lado
humano, vulnerável, frágil, de Lula, por outro lado, é o que torna muito maior
do que milhares de burocratas sem muita consciência de que agem como medíocres e
raivosos cães de guarda da elite predadora nacional.
Mas tudo isso tinha de acontecer, exatamente do jeito que aconteceu. Por
exemplo, esses anos todos de guerra política produziu, no Brasil, uma das
blogosferas mais fortes do mundo inteiro. E quem afirma é o jornalista
brasileiro mais poliglota e mais cosmopolita de todos, Pepe Escobar, conforme se
pode assistir no vídeo abaixo, um trecho de 20 segundos que recortei de uma
entrevista maior dele sobre o golpe. Ele cita vários blogs, mas esqueceu o
Cafezinho. Não tem importância: os blogs sujos que ele menciona são primos
nossos, é como nos citar também. A luta contra as mentiras da mídia hegemônica
nos torna companheiros de armas.
É um orgulho ser elogiado por alguém como Pepe Escobar! Escobar é tudo que um
jornalista coxinha gostaria de ser, mas nunca será: um sujeito extremamente
culto, que reside em Paris, São Paulo e Ásia, um jornalista independente que
escreve brilhantes análises em inglês, língua que domina com maestria
positivamente diabólica (visto que é brasileiro), que fala fluentemente vários
idiomas, que dá palestras em vários países sobre geopolítica. E, além de tudo, é
um homem de esquerda, que sabe que o Brasil foi vítima de um golpe e que a
partir de agora passará o resto de sua vida denunciando esse golpe, em diversas
línguas, onde quer que escreva ou fale.
A blogosfera brasileira é forte, paradoxalmente, por causa do monopólio e das
conspirações midiático-judiciais, fatores que a tem colocado sob uma pressão
terrível há vários anos, pressão essa que age como uma forja natural, a produzir
aço de puríssima têmpera!
Com o golpe, essa blogosfera tende a crescer, agora num contexto em que ela é
vista como ainda mais independente do que antes, porque escapa da tradicional
difamação da mídia corporativa, de que era uma blogosfera "chapa branca". Esses
ataques agora ficam vazios, sobretudo porque a mídia brasileira, agente
protagonista do golpe, precisa defender de todas as maneiras, mesmo que ainda
tende disfarçar, como a Folha, o governo que pôs lá. O chapa-branquismo da
imprensa brasileira hoje é nauseabundo.
Estreou há pouco, na Netflix, uma série intitulada Billions. Os dois
personagens principais, que antagonizam um com o outro, são: um bilionário do
mercado financeiro, interpretado por Damian Lewis (que fez o angustiado e
ambíguo protagonista de Homeland); e o procurador geral do Estado, interpretado
pelo extraordinário Paul Giamatti, a representação mais pura do sarcasmo
inteligente do cinema contemporâneo.
Eu gosto muito de assistir essas séries jurídicas americanas, assim como
curto filmes e romances sobre o tema.
É sempre interessante ver como os funcionários da procuradoria reiteram
sempre que ganham pouco, e que os ambiciosos procuram mesmo a banca privada.
Aqui é o contrário. Os ambiciosos procuram os salários de marajá do Ministério
Público e do Judiciário.
Acho importante também para dessacralizar os representantes dessas
instituições. Passamos tantos anos assistindo as novelas da Globo e as achando
excelentes e agora descobrimos que fomos enganados: as novelas da Globo eram
xaropadas alienantes, nunca mostraram a realidade política do país, nunca vimos
trabalhadores sindicalizados, promotores que agem por vaidade, juízes
ignorantes, toda gama de personagens que povoam, enfim, o teatro real da nossa
democracia.
Pois bem, num dos primeiros episódios, o personagem de Giamatti, o
procurador-geral, vai atrás de um repórter, de moral duvidosa, para tentar
arrancar dele uma informação. O repórter responde com uma bravata ética que soa
imediatamente falsa aos ouvidos do procurador, que rebate ironicamente:
- Ué, você é Glenn Greenwald agora?
Ora, a ficção aí se mistura à realidade, como acontece o tempo inteiro na
dramaturgia norte-americana, para retratar a admiração social pelo jornalista
que enfrentou o Tio Sam e seu serviço secreto e revelou ao mundo os segredos
sujos da NSA.
Na mesma hora, eu lembrei dos jornalistas da Globo, incluindo o até então
gentil Jorge Pontual, correspondente em Nova York, ofendendo publicamente Glenn,
com vocabulário de baixo calão, por causa das posições políticas e reportagens
de Glenn contra o impeachment. Numa entrevista a uma rádio, dada há algumas
semanas, Glenn chegou a dizer que, tendo viajado muito e conhecido a imprensa de
vários países, jamais testemunhou uma imprensa tão mentirosa como a do Brasil.
A mídia brasileira, com objetivo de dar sustentação ao golpe, criou um
universo paralelo, um mundo de mentiras, em que ninguém chamava (ou chama) o
impeachment de golpe, não havia debates sobre o tema, nem manifestos, nem
manifestações; e a presidenta foi absolutamente sabotada durante todo o
processo.
Esse processo, no entanto, foi oneroso para a mídia. Jamais me esquecerei da
perplexidade de alguns correspondentes estrangeiros, como o Alex Escobar, um
jornalista norte-americano do tipo moderado, convencional, muito mais próximo do
estilo tradicional da imprensa corporativa do que da blogosfera por exemplo (até
porque é empregado da Bloomberg e sua missão era escrever sobre bilionários),
sendo colocados no mesmo saco que os "blogs pró-Dilma". Isso foi quase hilário.
Eles ficaram ofendidos, com razão, mas foi divertido assistir a ginástica da
grande mídia, tentando pintar qualquer crítica ao impeachment como vindo de
setores radicais e inconformados do "lulopetismo".
Todos esses ridículos excessos da Globo acarretaram uma desmoralização
histórica. E não adianta agora, em pleno 2016, as forças conservadoras
inventarem formas desesperadas de bloquear a informação crítica, como o projeto
de Escola sem Partido. O máximo que a Escola sem Partido fará é criar
organizações secretas (coisa que nunca tivemos) para difusão de informações
políticas "subversivas", como ler poemas de Marighella ou os diários de Che
Guevara. Será muito mais excitante para os alunos se a literatura política
independente for criminalizada, porque aí ela terá o gostinho do fruto proibido.
Há uma dialética na vida que funciona como um anticorpo natural contra todos
os tipos de autoritarismo. Esse é o materialismo dialético é que derrotará os
dinossauros da nossa mídia corporativa.
Se prenderem o Lula, o que acontecerá? O próprio Lula respondeu, na coletiva
que deu após o espetaculoso show dos procuradores de Curitiba num hotel de
Brasília. O ex-presidente, emocionado, disse que não conseguia entender os
objetivos do Ministério Público, pois eles não conseguiriam prender suas ideias.
De fato, a Lava Jato entra agora numa fase curiosa. As conspirações
midiatico-judiciais que se iniciaram em 2005, com o escândalo do mensalão,
prenderam uma grande quantidade de empresários e políticos. Eu os considero
todos presos políticos, inclusive os publicitários e banqueiros presos no
mensalão. Sempre achei que a esquerda errou ao não ver que era errado defender
apenas uma ou outra liderança partidária. Todo o processo do mensalão e, agora,
da Lava Jato, é corrompido. Os réus, publicitários, banqueiros, empreiteiros,
políticos, doleiros, não são santos. Talvez tenham feito coisas ainda mais
terríveis do que aquelas de que são acusados, mas o processo é viciado mesmo
assim, tanto que as penas impostas a alguns deles são grotescamente
desproporcionais. Algumas das penas são de décadas de regime fechado!
Não podemos subestimar a força da Lava Jato. Ela hoje representa, em sua
essência mais cruel, mais brutal, o poder quase absolutista da casta jurídica,
que é a casta jurídica, de longe, mais poderosa - e mais bem paga - do mundo
inteiro.
Me parece claro que não dá para ser otimista. Estamos meio que condenados
ainda a uma série de derrotas. Mas todas essas derrotas já começam a ter o
gostinho antecipado da vitória, na medida em que são derrotas cada vez mais
desmoralizantes para os vencedores, por causa das táticas sujas e truculentas
que são cada vez mais obrigados a usar.
Derrubar as garantias constitucionais, ou seja, as liberdades políticas mais
caras de um regime liberal, destruir grandes empresas nacionais, inclusive as
maiores jóias da indústria brasileira, como a Odebrecht, apenas para prender
Lula e criminalizar o PT?
O preço do golpe foi muito alto - e isso constitui uma derrota para eles. A
partir de um momento, entenderam que não podiam mais recuar e foram em frente,
gastando uma quantidade enorme de capital político e preparando, assim, o
terreno para sua futura derrocada.
A desproporção entre os salários dentro do sistema nacional do funcionalismo
público é um acinte ao espírito democrático. As diferenças entre os salários de
um procurador e de um professor deveriam fazer corar de vergonha qualquer
brasileiro, sobretudo porque não é assim no resto do mundo. Deveria haver muito
mais equilíbrio no sistema, e são essas disparidades que estão por trás da crise
política que vivemos hoje.
Deveríamos reduzir drasticamente salários e benefícios das castas jurídicas,
políticos, etc, e aumentar o salário de professores, médicos, enfermeiros e
engenheiros que trabalham para o Estado, sob salários de fome.
A contenção dos gastos estatais com a manutenção de um desembargador daria
para melhorar a vida de uma centena de professores!
Câmaras de vereadores, a meu ver, poderiam ser extintas, sendo substituídas
por conselhos de bairros sem custo para o Estado, mas com poder de revogar o
mandato do prefeito e propor leis locais. Hoje, as câmaras de vereadores, assim
como é a Câmara Federal, vivem de chantagear o poder executivo.
O Senado poderia ser extinto, acarretando outra grande economia para o
Estado. Já basta uma Câmara Federal para vigiar o governo e reformar as leis.
Mas nada disso seria realmente necessário se fizéssemos uma reforma política,
uma reforma tributária e, mais importante que tudo, uma reforma da mídia.
A esquerda terá de rever alguns dogmas, claro.
Por exemplo, é preciso que saibamos separar as demandas do alto funcionalismo
público, em especial a casta jurídica, que traiu a sociedade com seu apoio ao
impeachment, e as demandas do médio e baixo funcionalismo, que ainda enfrenta
situações extremamente difíceis do ponto-de-vista salarial e das condições de
trabalho.
Seja como for, os golpistas são tolos se pensam aprisionar a verdade. A
economia não deslanchou. Temer e os políticos que apoiaram o golpe são
escrachados sem dó em aeroportos, saguões, rua, etc.
Nenhum deles consegue viajar ao exterior sem que apareça um punhado de
brasileiros dispostos a jogar na sua cara o que eles realmente são: usurpadores,
que conspiraram abjetamente para derrubar uma presidenta honesta, provavelmente
o presidente mais honesto que jamais tivemos, dando espaço para todos os tipos
de tramoias neoliberais derrotadas em quatro eleições consecutivas.
Tudo isso tinha de acontecer, para que a nossa resistência se formasse, para
que as nossas ideias pudessem ser batizadas novamente nas águas de uma oposição
independente. Para que nossa capacidade de análise e luta continuasse a ser
temperada no fogo das adversidades políticas.
O Brasil é grande demais, e a formação de núcleos cada vez mais fortes de
oposição é um imperativo. A própria concentração de mídia asfixia o mercado
brasileiro de publicidade na medida em que um percentual exagerado desses
recursos são tragados pelo monopólio. Esse é o materialismo dialético a que eu
me referi, e ao qual nenhum império escapa, nem a Globo: haverá interesses
econômicos cada vez mais fortes em oposição à ela.
http://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/256114/Pepe-Escobar-“a-blogosfera-brasileira-é-a-mais-forte-do-mundo”.htm