quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Licença de Belo Monte deve ser celebrada

 

Paulo Moreira Leite

O jornalista e escritor Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília

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A decisão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que ontem concedeu a licença de operação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, autorizando enchimento do reservatório da usina, deve ser celebrada pelo brasileiros.

É uma medida que desentrava uma obra de R$ 30 bilhões, construída dentro de rigorosos critérios ambientais, a tal ponto que até seu potencial energético foi duramente sacrificado para que assegurar o menor dano possível à natureza e a população local, inclusive nações indígenas.

Num país que se esforça para atingir o grau de civilização permitido pelo século XXI, onde a produção de energia é uma prioridade máxima para se assegurar confortos básicos, a construção de Belo Monte -- quarta maior hidrelétrica do mundo, segunda maior do país -- representa uma opção racional quando comparada com alternativas possíveis aqui e agora. Ao explicar a decisão, Marilene Ramos, presidente do Ibama, disse que adiar a concessão da licença seria “penalizar o Brasil” e “atentar contra a modicidade tarifária”. Ela também recordou um dado elementar. Quando a usina estiver em pleno funcionamento, será possível desligar 19 termelétricas no país -- que produzem a mesma quantidade energia, mas são muito mais caras e poluentes.

Em maio deste ano, fiz uma viagem para Belo Monte para o 247. Visitei a usina, onde conversei com trabalhadores e engenheiros. Também estive com a população local, fossem moradores de palafitas que hoje residem em casas. Lembrando que o costume de amaldiçoar o progresso é um dos traços típicos do homem moderno -- aquele mesmo que não abre mão de nenhuma conquista tecnológica -- voltei convencido de que o país só terá a ganhar com a obra.

Você pode ler abaixo a serie de reportagens que publiquei na ocasião:

BELO MONTE E A LUTA POR UMA USINA NECESSÁRIA

Num país que não se livrou do trauma do apagão de Fernando Henrique Cardoso e torce o nariz diante do salto da conta de luz definido no segundo mandato de Dilma Rousseff, a visão convencional sobre Usina Hidrelétrica de Belo Monte é um espanto. No final de abril, 77% das obras civis da usina – que já envolveram 2,3 milhões de metros cúbicos de cimento e 88.820 toneladas de aço – estavam concluídas. Embora tenha ocorrido um atraso de oito meses na conclusão de uma casa de força secundária, os responsáveis pela hidrelétrica rejeitam toda hipótese de perder o prazo final para entrega e funcionamento da 24ª e última turbina, em janeiro de 2019, data definida por contrato.

O planejamento e a construção de Belo Monte têm sido acompanhados, há três décadas, por um coral de críticas e denúncias em tom apocalíptico, embora sua construção seja um investimento fundamental para uma sociedade na qual 130 milhões de pessoas já possuem telefone celular, onde a iluminação precária em bairros da periferia urbana constitui uma tragédia que atinge escolas, hospitais, empresas e residências. Localizada a 55 quilômetros de Altamira, no Pará, a usina representa o maior investimento em infraestrutura do país em muitos anos. Quando ficar pronta, será a segunda maior hidrelétrica brasileira – abaixo apenas de Itaipu – e a quarta do mundo. Sua energia chegará a 17 Estados, alimentando 18 milhões de residências, ou 60 milhões de pessoas – população equivalente à soma dos moradores de São Paulo e Rio de Janeiro. Em 2010, quando os trabalhos efetivamente tiveram início, projeções da Universidade de Brasília diziam que, em função do crescimento da população, do avanço da urbanização e da expansão da economia, em 2020 o país estaria diante de um déficit de energia equivalente a toda eletricidade consumida pelo Estado de São Paulo.

Estudioso de Belo Monte desde 1987, o consultor do Senado Federal Ivan Dutra fez um curso de pós-graduação na Universidade do Tennessee, um dos principais centros hidroeletricidade nos EUA. Ele é autor de uma tese de doutorado sobre Belo Monte. Convidado pelo 247 a imaginar uma alternativa tecnicamente possível para gerar os mesmos 11. 233,1 MWs que Belo Monte irá produzir, Ivan Dutra estimou que seria necessário construir pouco menos de 400 centrais elétricas de pequeno porte, com capacidade para gerar 30 MWs cada uma, utilizando um reservatório com 3 quilômetros quadrados, no máximo. “Como simples exercício de cálculo, podemos chegar à conclusão de que para equivaler à capacidade instalada de Belo Monte teríamos uma área de alagamento muito maior, muitos ambientes distintos impactados Brasil afora e menores benefícios às comunidades, sem o diferencial da escala”, disse ele.

A hidrelétrica é um marco no debate ambiental brasileiro. O país discute Belo Monte desde que, em 1989, a índia Tuíra dançou de facão em punho à frente de diretor da Eletrobrás José Antônio Muniz Lopes, que, em plena selva, fazia um discurso para anunciar o projeto de construção usina. Já no início da obra, em 2010, Belo Monte mobilizou um elenco de estrelas hollywoodianas que desembarcam no Xingu para protestar, mas essa figuração era apenas a cereja do bolo. A usina já se encontrava na agenda de grandes entidades ambientais do mundo desenvolvido, com temido poder de fogo político para pressionar seus respectivos governos a liberar ou segurar recursos disponíveis para países do Terceiro Mundo em organismos internacionais, em movimentos onde a ecologia faz rima direta com economia.

No interior do Pará, a área de Belo Monte foi endereço de pelo menos 30 atos de protesto – inclusive sequestro de funcionários, ônibus incendiados e inúmeros bloqueios de estrada – em cinco anos de trabalho. Principal autoridade da Igreja católica na região, em 2012 o bispo Erwin Krautler escreveu um artigo onde denunciou “ um rolo compressor” que “está passando por cima de todos nós”. Referindo-se a um encontro com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Planalto, em julho de 2009, quando o governo promovia negociações ecumênicas para formular a versão final do projeto, dom Erwin escreveu: “a promessa que Lula pessoalmente me deu, segurando-me no braço e afirmando “Não vou empurrar este projeto goela abaixo de quem quer que seja” foi pura mentira. Falou assim para “acalmar” o bispo e livrar-se deste incômodo religioso que recebeu em audiência. O governo empurra sim Belo Monte goela abaixo!”, escreveu o bispo.

É uma visão discutível. Num país traumatizado pela história de Tucuruí, hidrelétrica construída entre 1975-1984, anos finais da ditadura militar, que inundou áreas inteiras da floresta amazônica e provocou o inaceitável deslocamento forçado de pelo menos 35 mil pessoas, Belo Monte pode ser criticada ou defendida com ardor igual mas constitui um marco de obra negociada com paciência e espírito construtivo. Durante o segundo mandato, Lula fez três visitas à região. Dialogou com as lideranças locais – nem todas ficaram tão decepcionadas como dom Erwin Kautler – e, num processo que ninguém poderia definir como arrogante nem autoritário, definiu modificações grande importância, impensáveis na engenharia de um país que, em 1982, maravilhou o mundo com a inauguração de Itaipu.

Quando examinada pelo prisma da pura engenharia, sua máxima capacidade instalada, de 11.233,1 MW, até poderá ser vista pelos estudiosos do futuro como um caso de desperdício diante do que seria possível obter, caso o governo tivesse seguido métodos convencionais de construção já testados e aprovados no mundo inteiro, no Brasil, na China ou na Nigéria. No início, pensava-se em construir seis usinas no Xingu. Decidiu-se fazer apenas uma. Mesmo assim, a usina em fase final de construção irá sacrificar 61% da energia prevista no plano original para se tornar menos agressiva do ponto de vista ambiental. Outra mudança de vulto foi o uso de uma tecnologia mais amigável, chamada fio d’água. Ela evitou a construção de um reservatório imenso – o projeto chegava a 1.225 quilômetros quadrados de área, só um pouco menor que o de Itaipu –, poupando moradores de grandes transtornos daí decorrentes. Sem um reservatório de grandes dimensões, recurso clássico hidrelétricas, Belo Monte não poderá fornecer energia de forma regular durante todos os meses do ano. Só poderá contar com a correnteza do Rio Xingu para mover suas turbinas, numa força que se modifica que conforme os períodos de seca e de cheia da região. No esforço para impedir o alagamento de qualquer uma das onze terras indígenas, o projeto incluiu ainda uma obra suplementar: um canal derivativo para contornar a área – o custo é de R$1 bilhão. Em função deste canal, dizem os construtores, “nenhum milímetro das 11 terras indígenas será alagado”.

De um orçamento inicial da obra, R$25 bilhões, Belo Monte irá destinar R$3,2 bilhões – ou 13% do custo total do projeto – a programas socioambientais, montante sem paralelo na contabilidade dos investimentos públicos ou privados do país desde que as caravelas de Cabral despontaram no litoral da Bahia. Estes programas incluem um reforço na saúde pública que já trouxe resultados concretos, reduzindo em 90% os casos de malária na região de Altamira. (Foram 9211 casos registrados em 2011 contra 838 em 2014. Nas áreas indígenas, a redução foi de 87%). Também permitiram que a cidade construísse seu primeiro programa de saneamento básico e reformasse o sistema de distribuição de águas. Nasceram projetos de moradia para a população ribeirinha, que, em ritmo desigual, está trocando barracos de madeira sobre as águas, as tradicionais palafitas (“que balançam mais do que escola de samba”, na definição de um antigo morador) por casas de 63 metros quadrados em bairros com luz elétrica, água encanada e um quintal de 300 metros por família.

Formada por 3 mil almas, ou 1,5% da população local, mas herdeiras de uma riqueza cultural que não pode ser contabilizada em estatísticas, as nações indígenas são as mais mobilizadas e aquelas que recebem um número mais amplo de benefícios, numa situação que, como era inevitável, está sujeita a múltiplas interpretações. Como se fosse possível ignorar a violência e as tentativas de submissão que foram os traços fundamentais dos contatos históricos entre as autoridades e os primeiros brasileiros, num comportamento que começou logo após o Descobrimento e chegou aos tempos da ditadura militar de 1964-1985, os adversários da hidrelétrica denunciam as concessões à população indígena como simples herança das técnicas de cooptação através de bugigangas desprezíveis. Os defensores de Belo Monte defendem o processo como saudável medida compensatória, o melhor instrumento que a civilização desenvolveu para encaminhar conflitos permanentes. Determinadas vantagens são tão generosas, do ponto de vista material, que boa parte da população não-indígena, cerca de 98,5% dos habitantes do local, encara as medidas com inveja e até ressentimento.

Todos os meses, cada cacique da área próxima à hidrelétrica – isso inclui aldeias situadas a mais de 300 quilômetros distância – recebe bens e mercadorias em valor equivalente a R$30 mil por mês. Somando-se outros investimentos, chega-se a uma contabilidade surpreendente. Em cinco anos, foram feitos donativos e gerados benefícios surpreendentes:

  • 711 casas;
  • 366 barcos e voadeiras;
  • 42 caminhonetes Hillux, da Toyota;
  • 387 motosseras e roçadeiras;
  • 98 geradores de energia;
  • 13 pistas de pouso finalizadas.

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BELO MONTE: O PROGRESSO, APESAR DE TUDO
A vida cotidiana mostra que nem todos em Altamira foram preparados para mudanças que hidrelétrica traria a suas vidas, mas moradores aplaudem mudança de palafitas para casas de concreto, conta segunda reportagem sobre Belo Monte.


Como se pode imaginar pelos números de caminhonetes e lanchas voadeiras que chegam gratuitamente às aldeias – como se descreve na reportagem anterior desta série – os ganhos obtidos pelas populações indígenas irritam grande parte da população local. Determinados moradores de Altamira encaram esses benefícios de forma negativa, expressando um ressentimento que, conforme o sociólogo norte-americano Richard Sennet, é assumido por pessoas que veem as autoridades tomando providências para melhorar a sorte daqueles considerados mais fracos e desprotegidos, mas sentem que nada fazem para proteger pessoas comuns, como elas se classificam, que também têm suas necessidades. Eduardo Barbosa da Silva, eletricista aposentado, pai de sete filhos, disse ao 247: “Eu acho que os índios estão extrapolando. Usam e abusam dos direitos. Ganham tantas coisas que pergunto do que irão viver quando a obra acabar.” Cinquentão, nascido e criado em Altamira, Eduardo passou a maior parte da existência nas palafitas, aquelas favelas de madeira, instáveis e inseguras, nas margens do Xingu. Há pouco tempo ele recebeu um benefício inegável. Trocou aquela espécie de barraco fluvial por uma residência de concreto no bairro de Jatobá, em Altamira – numa construção que garante que a temperatura interior sempre seja inferior à da área externa. Um de seus filhos reside na casa vizinha – que também foi incluída no programa de benefícios compensatórios de Belo Monte, para os proprietários que optaram por abandonar as palafitas em troca de residências num dos vários conjuntos residenciais construídos na cidade.

A crítica aos benefícios da população indígena se alimenta de uma força cultural que nem sempre é fácil de compreender e aceitar. A população das aldeias e seus descendentes carregam uma herança cultural que outros brasileiros nunca possuíram ou já perderam. O apego ao trabalho alienado, que está na base das sociedades ocidentais e é típica do sistema capitalista, não faz parte da formação nem da vida cotidiana da maioria das sociedades indígenas, educadas para extrair a riqueza de fontes diretas na natureza, que sempre tiveram como sua.

Em Altamira, eles nem sempre acham que os benefícios recebidos compensam aquilo que perderam. Adeulan Assunção, bisneto da etnia Xipaya, que hoje reside numa casa construída pela Norte Energia em Altamira, disse ao 247 que “antigamente a vida era melhor. Eu acordava, pegava minha canoa e ia para o rio. Pescava e voltava para casa. Ninguém me incomodava. Agora, tenho trabalho, tenho horário, tenho patrão. Chego cansado no fim do dia. Eu não ficava cansado.”

Pai de quatro filhos, Adeulan costuma pagar as contas do fim do mês como pedreiro. Reclama da distância entre sua casa e os locais de trabalho, trajeto que precisa cumprir de ônibus, pagando R$3,50 a passagem, quantia que muitas vezes se torna alta demais para seus ganhos. A atividade, de qualquer maneira, lhe deu um orgulho. Ele participou da construção de um hospital na cidade e, como todos os operários, engenheiros e gerentes que participaram do empreendimento, teve direito a escrever seu nome numa das paredes do estabelecimento. “Quem for lá pode ler o meu nome.”

Ao lado de queixas legítimas, há sucessos indiscutíveis. “Abandonamos uma moradia insegura, por uma residência em terra firme, com banheiro dentro de casa, o que é muito importante”, lembra a costureira Suely Moreira da Silva, 39 anos de idade, desde os 17 na região, que deu entrevista para o 247 na porta de sua casa no Jatobá. (Suely, o marido e os quatro filhos posaram para a foto que ilustra essa reportagem).

Temperamento de empreendedora, numa casa equipada com geladeira, tevê e computador, Suely decidiu levantar um clássico puxadinho no quintal, onde o marido pretende montar uma venda para comercializar alimentos e produtos de limpeza com os vizinhos. “Troquei um barraco por essa casa. Quem vai reclamar?”

Há quem reclame. A camareira Luiza Ernestina de Assunção, 58 anos, morava numa palafita habitada por 25 pessoas – entre filhos, netos e bisnetos. Ao negociar a mudança com a Norte Energia, levou quatro casas. Uma para si, e três para os filhos mais velhos, já casados, que viviam com ela. É possível assistir, na internet, a um vídeo em que Luiza Ernestina, em tom de celebração, se despedia da casa antiga antes de mudar-se para a nova. No vídeo, ela aponta um cômodo onde dez pessoas dormiam juntas.

Mas no dia em que entrevistei a camareira em sua casa no Jatobá, ouvi um rosário de queixas. Embora a população da moradia anterior tenha se dividido por quatro casas no Jatobá, ela reclamava do tamanho dos quartos: “Não há espaço para todo mundo dormir.” Reconhece um ponto a favor da usina de Belo Monte (“trouxe trabalho para a região, o que é bom”) mas reclama que “há 30 anos a vida era mais segura. Não tinha roubo”. Para além de dramas comuns na vida de milhões de brasileiros, contudo, Luiza Ernestina tem um motivo especial para o descontentamento. “Quero mais uma casa, para um de meus filhos.”

Se conseguir, terá trocado uma palafita por cinco residências de alvenaria, janela de alumínio e quintal. A reivindicação tem uma motivação peculiar. O rapaz residia com a mulher numa das casas recebidas da Norte Energia, mas separou-se e agora necessita de outro lugar para morar sem causar transtornos à residência da mãe.

“Índio gosta de falar a verdade.”
Apesar de conflitos permanentes, os trabalhos da usina seguem com relativa regularidade. Prevê-se o funcionamento da primeira turbina do canteiro principal em março de 2016, conforme definido no cronograma original. As demais turbinas devem ser ligadas – tudo indica – até janeiro de 2019, quando Belo Monte deve estar funcionando a toda carga.

Há um atraso de meses na segunda casa de força. Deveria ter entrado em funcionamento em fevereiro, mas deve ser ligada em novembro. É simbólico, mas envolve 3% da energia total a ser produzida e o atraso pode ser explicado, basicamente, por razões políticas. Nos primeiros anos da obra, a área da usina costumava ser invadida por ativistas trazidos de partes do país, que ocupavam o lugar e impediam o trabalho de 25 mil operários, engenheiros e executivos. Mas a Justiça proibiu a importação de militantes-grevistas, o que transformou Pimental no endereço preferencial para os conflitos.

Localizada no sítio Pimental, a segunda casa de força tem uma logística favorável ao trabalho de agitação e propaganda. A posição geográfica permite o bloqueio do tráfico de ônibus, automóveis e caminhões e a consequente interrupção dos trabalhos. Também ajuda na chegada de jornalistas e cinegrafistas, com seus equipamentos cada vez mais pesados, e na retirada rápida em caso de necessidade. Em janeiro de 2015, aquele trecho de estrada do Pimental foi bloqueado por quatro dias. Em fevereiro, ocorreu um novo protesto, pelo mesmo espaço de tempo. Este bloqueio do Pimental foi feito a partir de um imenso conjunto de reivindicações, mas, 48 horas depois do bloqueio, as partes se encontraram no auditório da Universidade Federal do Pará, em Altamira. Cinco dezenas de indígenas, portando lanças, arco-e-flecha e bordunas, estavam presentes para debater com advogados da Norte Energia, a coordenadora da Casa do Governo e representantes da Funai e do Ministério Público. Um dos caciques presentes compareceu em trajes à paisana, sem a indumentária de acordo para a ocasião. Minutos antes de o encontro ter início, sua mulher apareceu na sala para lhe entregar o cocar de penas, logo colocado na cabeça.

Ao longo da reunião, acompanhada pelo 247, as partes debateram três pontos principais. O primeiro envolvia uma tentativa inaceitável de criminalizar lideranças indígenas. Num inquérito criminal, caciques de maior expressão foram acusadas – sem qualquer base factual – de participar de um quebra-quebra ocorrido em Altamira e, em função disso, corriam o risco de parar na cadeia, se fossem condenadas.

Sem camisa, com um chamativo cocar esverdeado, um dos denunciados, o cacique Leo Xipaya, levantou sua borduna enquanto caminhava em direção ao microfone. “Prefiro acabar minha borduna na cabeça de qualquer um aqui antes de ir preso”, disse. Apesar da linguagem violenta, o cacique tinha razão. Outro cacique, Rodrigo Valério, seguiu no mesmo tom: “Vocês não vão me intimidar com um processo. Eu não tenho vergonha de ser preso.” O impasse durou pouco.

Profissional calejado pela luta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, onde atuou na década de 1980, em companhia de Luiz Gushiken e outras lideranças nascidas na contra a ditadura, o advogado Arlindo Miranda mudou-se para Altamira, onde é o superintendente de Assuntos Fundiários da Norte Energia. Habituado a intervir em conflitos delicados, Arlindo encerrou as discussões ao constatar que as acusações contra as lideranças indígenas não tinham pé nem cabeça: até funcionários do governo federal que assistiram à confusão confirmavam isso. O advogado comprometeu-se, então, a notificar a polícia a esse respeito.

Numa dessas contradições irônicas, as mesmas lideranças indígenas que passaram vários anos questionando a construção de uma hidrelétrica na região aproveitaram aquele encontro no auditório da UFPA para reivindicar a instalação de luz nas aldeias. O complicador é que se as localidades beneficiadas pelo programa Luz para Todos, lançado para atingir áreas remotas, podem ser conectadas sem problemas, havia a questão das aldeias mais distantes. Neste caso, para se obter energia é preciso usar geradores – mais precários, quebram com frequência, como recordou uma representante da Funai, fortalecendo o argumento das lideranças indígenas. Os caciques também cobraram pela instalação das Unidades Básicas de Saúde, argumentando que já deveriam estar prontas. Um diretor da Norte Energia assumiu o compromisso de resolver o caso em 120 dias – uma primeira parte em dois meses, a segunda parte nos 60 dias posteriores. “É bom constar em ata”, disse Rodrigo Valério, expressando sua descrença enquanto encarava os interlocutores. “Se o prazo não for cumprido, vou dormir no escritório de vocês.”

A causa principal daquele encontro envolvia as casas indígenas. Ao longo da construção de Belo Monte, o tipo de moradia abriu um debate entre as aldeias, levando a Norte Energia (vitoriosa da licitação para a construção de Belo Monte) a adaptar-se ao gosto de cada uma. A maioria das etnias preferiu receber residências em madeira, de acordo com um modelo chancelado pela Funai e que parecem mais próximas das antigas casas indígenas. Apenas duas etnias deram sua preferência por casas de alvenaria. O problema é que, quando as casas de alvenaria ficaram prontas, muitas aldeias mudaram de ideia, pois era fácil perceber que eram mais seguras e confortáveis. Tentaram reabrir negociações para derrubar as residências de madeira, já prontas, para receber, em troca, os outros modelos. Embora tenha uma longa lista de concessões feitas às lideranças indígenas, neste caso a Norte Energia entrou no encontro com decisão fechada – cada um havia feito sua escolha na hora adequada e não havia motivo para voltar atrás. Embora desgostos, os indígenas concordaram.

“Índio gosta de falar a verdade e não gosta de jeitinho. Se você combinou uma coisa, tem de cumprir. Ele também cumpre sua parte.” Quem fala nesses termos é o empresário Fabiano Tontini, que se mudou para Altamira com um diploma de engenheiro agrônomo na bagagem. Com o passar dos anos, embrenhou-se na floresta, fez contatos com as aldeias e tornou-se empreiteiro. Para construir 65 casas de alvenaria na aldeia dos jurunas, assinou um contrato com a Norte Energia. A convivência respeitosa com os caciques lhe deu uma autoridade que costuma ser de grande utilidade quando os canais de conversação ficam entupidos. Em fevereiro, quando o segundo bloqueio no Pimental ameaçava chegar a um impasse, Tontini envolveu-se nas negociações com os indígenas. Ele conta: “Eu disse: é melhor recuar. A Norte Energia não vai negociar aqui, mas só em Altamira. Vocês estão pedindo dez e podem ganhar sete. É melhor do que não levar nada e ainda correr o risco de ir embora com a polícia no rabo.”

“Só querem dar um pouquinho para vocês.”
Embora os 25 mil trabalhadores da usina tenham direito a alojamento e façam as refeições – gratuitas – no interior dos canteiros, um investimento de R$25 bilhões numa região pobre e esquecida atraiu milhares de imigrantes, criou oportunidades e enriqueceu muitas famílias. Em contrapartida, gerou novas despesas e criou dificuldades inesperadas. As residências de 63 m quadrados são confortáveis e infinitamente mais seguras, mas não representam o paraíso na selva. Os moradores das palafitas padeciam nos dias de enchente e jamais puderam dispor de condições sanitárias adequadas. Difícil negar que a imensa maioria está feliz no novo endereço.

Mas antes todos faziam uso de eletricidade através de ligações clandestinas – agora é preciso pagar a conta de luz. Mesmo em valores subsidiados, é uma despesa a mais – mas o salário não subiu para acompanhar.

O gasto de quem morava de aluguel também disparou, levando cerca de mil famílias a deixar suas casas para ilustrar a paisagem de pequenos municípios em torno de Altamira com um cenário semelhante ao que se vê na periferia de muitas cidades brasileiras, às voltas com nosso urbanismo desorganizado, às vezes selvagem, presente no país inteiro – acampamentos de sem-teto, à espera de um local para morar. Os mais pobres têm direito ao aluguel social – mas este tem prazo de validade, o que contribui para gerar novas incertezas.

Sobreviventes de uma época que se extingue em passos abruptos pelas ruas de Altamira, algumas atividades econômicas tradicionais parecem irremediavelmente condenadas e não se sabe o que fazer com elas. É o caso de uma centena e um pouco mais de carroceiros, simpáticos profissionais que cuidavam do transporte urbano em suas carroças puxadas a cavalo – mas agora perdem espaço e clientes com a oferta de veículos motorizados.

Outro caso, muito mais preocupante, envolve a pesca, uma das principais atividades econômicas de quem vive à beira de um rio imenso, seus afluentes e igarapés. A pesca tem um valor comercial reconhecido, tanto em se tratando de peixes para alimentação, como para os ornamentais. Ainda serve para a pura subsistência à beira d’água, permitindo uma vida autônoma, modestíssima, mas “sem patrão para encher o saco”, parecem dizer muitos pescadores. Estudiosos da Universidade Federal do Pará atestam que as obras de Belo Monte não trouxeram maiores alterações aos peixes do lugar. É certo que o projeto da hidrelétrica incluiu várias medidas positivas, destinadas a proteger tanto a atividade dos pescadores, como a construção de um elevador capaz de transportar embarcações de porte razoável pelos desníveis criados pelas obras no Xingu, como túneis e escadas capazes de permitir o deslocamento dos peixes como se nada (ou quase nada) tivesse acontecido. Apesar disso, como o 247 pode comprovar, é difícil encontrar um pescador que não se queixe de que sua atividade foi prejudicada e que teve prejuízos imensos.

Os conflitos e disputas levaram o Palácio do Planalto a criar uma representação local, a Casa de Governo, dedicada a debater litígios e buscar soluções na região. Para Cleide Antônia de Souza, uma funcionária graduada do Incra que coordenou os trabalhos até uma semana atrás, “é possível extrair uma boa lição de Belo Monte: ninguém soube preparar a população de Altamira para as mudanças que uma obra desse porte iria provocar em suas vidas”.

Quando era secretário-geral da Presidência da República, o ministro Gilberto Carvalho, indicou o veterano Avelino Ganzer, um sindicalista tarimbado da região, para atuar como interlocutor do Planalto junto aos movimentos sociais. Nascido numa família de agricultores gaúchos que se mudou para o Norte do país atraída pelas promessas da Transamazônica, nos tempos do governo do general Emílio Médici, Ganzer é uma liderança histórica da CUT e do Partido dos Trabalhadores, com uma atuação destacada entre trabalhadores rurais e agricultores. Conforme Avelino, “Belo Monte cumpriu o objetivo de construir uma usina que respeitasse a população do lugar. A Amazônia nunca teve uma usina construída com tanto respeito e diálogo”. Avelino acredita que, nos próximos anos – o prazo de conclusão é janeiro de 2019 – será preciso aproximar o governo federal e a Norte Energia num programa negociado para manter o projeto. Perguntado qual deveria ser a prioridade, respondeu ao 247: “Moradia.” Até a semana passada, 3000 moradores das palafitas tinham sido abrigados nos quatro bairros construídos pela Norte Energia. Mil e cem permanecem na fila e um novo bairro está em construção.

Boa parte dos conflitos que envolvem Belo Monte não são criados exclusivamente por lideranças indígenas nem pela população local. Têm participação ostensiva do Ministério Público do Pará, que desde o início engajou-se numa postura contrária a construção da hidrelétrica. Tentou caminhos que permitissem impedir a obra na Justiça e promove uma política permanente para judicializar um conflito que envolve uma decisão soberana de um governo eleito pela maioria dos brasileiros em outubro de 2010.

Em outubro de 2011, quando os trabalhos de construção estavam no início, a jornalista Rebecca Sommer gravou uma intervenção do procurador da República Filipe Pontes – autor de 13 ações questionam Belo Monte na Justiça do Pará – durante encontro de lideranças indígenas reunidas na Trincheira Bacajá, no Xingu, uma das mais afastadas da usina. No vídeo, Felipe Pontes diz que, se não fosse possível impedir a construção da barragem, seria recomendável lutar para trazer “muito mais dinheiro para cá” como compensação pelos danos que seriam causados às aldeias. O procurador diz ainda que os engenheiros de Belo Monte “ só querem dar um pouquinho para vocês e ficar com o resto para eles”. O vídeo chegou a ser exibido pelo YouTube durante quatro dias, até que foi retirado da internet após pedido do Ministério Público do Pará.

A procuradora Thaís Santi, que também atua no Pará, já comparou os efeitos da construção de Belo Monte ao regime nazista de Adolf Hitler. Numa entrevista à jornalista Eliane Brum, do jornal El País, a procuradora citou a filósofa Hanna Arendt, profunda conhecedora dos regimes totalitários do século 20. Taís disse que Arendt “lia o mundo do genocídio judeu. Eu acho que é possível ler Belo Monte da mesma maneira.” É uma visão possível, assegurada pelas garantias de liberdade de expressão que estão entre as cláusulas pétreas da Constituição – mas obviamente absurda.

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AS NOVAS BATALHAS PELA FRENTE
Num país onde a demanda por energia cresce 4,3% ao ano, novas hidrelétricas são necessárias – e novos conflitos já se anunciam.


A reverência ecológica que costuma ser evocada pela simples menção das palavras “Belo Monte” é um anacronismo. Em 1972, com a chegada de escavadeiras, tratores, caminhões e tropas do Exército que construíram a Transamazônica como parte de uma política definida pelo lema “Integrar para não entregar”, teve início um conjunto de mudanças sem retorno. As marcas deixadas pela ditadura estão em vários lugares. Em Altamira, há a rua Ernesto Geisel. Um dos municípios da região chama-se Medicilândia, em homenagem a Emílio Garrastazu Médici.

Não foi só um modo de vida que se modificou, criando novas oportunidades de emprego, trazendo novos moradores e gerando novas exigências da vida urbana. Em luta contra a própria pobreza, milhares de famílias de agricultores do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná abriram uma nova corrente migratória e mudaram-se para o lugar. Em vários restaurantes de Altamira, o churrasco, trazido pelos imigrantes do Sul, tornou-se a principal atração do cardápio, rivalizando com o peixe e o camarão da tradicional dieta local. A própria vegetação foi transformada.

A floresta em torno da hidrelétrica nada exibe de selvagem. As árvores são baixas e não lembram a vegetação original da Amazônia, formada por gigantes com copas a vários metros do chão. Com o tempo, a área ganhou feições típicas do agronegócio: é formada por fazendas de gado, que costuma ser enviado, em pé, em carrocerias de caminhão, para outros pontos do país. Reflexo de uma etapa acanhada em seu desenvolvimento, os fazendeiros da região ainda não acumularam recursos para construir frigoríficos para que o gado de seus imensos rebanhos, entre os maiores do país, seja abatido, cortado, embalado e vendido. Por essa razão, bois e vacas viajam em pé, examinando a paisagem com olhos imensos.

Os investimentos da usina criaram um ambiente de pleno emprego em Altamira e arredores. O valor médio da hora de trabalho sofreu uma elevação de 50% ao longo dos anos e o aumento do consumo chegou a 25%, conforme a Associação Comercial. Cidade de edifícios de três andares e muitas ruas de terra vermelha, Altamira assiste à chegada das primeiras grifes de prestígio.

Os programas socioambientais da Norte Energia foram criados para atender a uma necessidade política óbvia, que era responder às críticas dos adversários da hidrelétrica. Em grande parte, elas eram alimentadas pela área ambiental do próprio governo Luiz Inácio Lula da Silva, onde Marina Silva, ministra até 2008, era uma adversária de primeira hora. As críticas prosseguem até hoje, até porque estamos no interior de um dos mais pobres estados brasileiros, mas é difícil negar que determinados investimentos atendam às necessidades reais. Foram erguidos quatro hospitais novos na região, inclusive o Hospital Geral de Altamira, o maior da cidade, com 100 leitos. As redes de esgoto da cidade – 220 quilômetros – e de água potável, de 170, envolveram investimentos da ordem de R$485 milhões. As obras em educação envolveram a construção de 270 novas salas de aula e reforma de outras 378. Na área de segurança pública, os investimentos chegam a R$105 milhões.

As queixas do cidadão comum – são 100 mil habitantes apenas em Altamira – envolvem questões práticas e não dizem respeito ao meio ambiente. Iniciativas que pareciam condenáveis, há 40 anos, hoje estão integradas à vida cotidiana. “Diante de Belo Monte, o povo se pergunta por que foi possível construir uma usina desse tamanho, uma obra importante, cara, difícil, mas não deu para terminar 1000 quilômetros de asfalto na Transamazônica, que seria muito útil para tanta gente que ganha a vida por aqui”, observa o senador Paulo Rocha (PT/PA).

Uma crítica antiga dos adversários de Belo Monte envolve a partilha da energia que será gerada: 10% de seus MWs estão reservados para os estados da região amazônica. O próprio Pará ficará com 3,2%. É uma visão que impressiona, mas deve ser ponderada. Esta diferença reflete, essencialmente, a imensa desigualdade no desenvolvimento dos estados brasileiros. Vive-se num mundo que – mais uma vez – não admite exceção à regra segundo a qual quanto mais desenvolvida é uma região, maior é sua necessidade de energia – venha de onde vier. A pergunta consiste em saber como estados produtores de energia podem usar este recurso para financiar o próprio progresso. A receita obtida pelos royalties é considerada irrisória pelos economistas, empresários e políticos locais. “A grande questão é modificar a estrutura do ICMS, para que um estado produtor de energia também possa ficar com sua parte nesse imposto”, afirma Paulo Rocha. O debate sobre ICMS costuma provocar bocejos em Brasília, tão antigo que é, mas o Pará ingressa num clube que tem um sócio poderoso, o Paraná, abrigo de Itaipu, a maior usina hidrelétrica brasileira, que se encontra na mesma situação.

Em fevereiro de 2010, último ano do governo Lula, a licença de Belo Monte foi aprovada pelo Ibama. O leilão ocorreu em abril, com uma surpresa que o Planalto deixou para última hora – a criação da Norte Energia, empresa que tem a estatal Eletrobrás como maior acionista, com 49,98% de participação. Dois fundos de pensão de funcionários de empresas estatais, onde o governo federal exerce uma influência reconhecida, somam 20%. Dos quase R$29 bilhões já investidos em Belo Monte, o BNDES entrou com R$22,5 bilhões, sendo que os acionistas já integralizaram R$6 bilhões. Através da Norte Energia, o governo federal assumiu, na prática, o controle direto sobre os trabalhos. Define ritmos, prazos e metas. As grandes empreiteiras do país, como Odebrecht, Camargo Correa e Andrade Gutierrez, participam de Belo Monte através do consórcio que toca a obra, mas não dirigem os trabalhos.

Em função das condições difíceis, a criação da Norte Energia é vista com um lance de astúcia justificada pelas circunstâncias. Imagine o leitor desta reportagem o que teria acontecido com Belo Monte caso tivesse de ser defendida exclusivamente por mãos privadas, obrigadas a enfrentar um furacão político interno e externo, que vinha de muito longe e chegaria mais longe ainda. Ainda em 1989, meses depois de a caiapó Tuíra exibir-se com seu facão perante câmaras e máquinas fotográficas de todo o mundo, ocorreu um fato significativo para valer: o Banco Mundial anunciou o cancelamento de um empréstimo de US$500 milhões à Eletrobrás, do presidente Antônio Muniz Lopes, que teve o rosto exposto à lâmina naquela dança.

A cena não apenas lembrou que o país seria obrigado, dali por diante, a dar maior atenção aos direitos dos primeiros brasileiros, o que era justíssimo. Também deixou claro que havia uma novidade a ser levada a sério. A partir de então, seria possível mobilizar os direitos legítimos da população indígena para exacerbar reivindicações ambientais e travar o desenvolvimento. Assim, governos e entidades de países que não tem o menor preconceito contra outras formas de energia dentro de casa – inclusive nuclear – passaram a monitorar as opções do governo brasileiro, interferir no debate interno e apoiar atos de oposição à produção de preciosos MWs. Sem muito pudor, criou-se ainda uma cultura que tenta questionar os direitos dos brasileiros sobre a Amazônia.

Em 2011, uma mobilização de ONGs reunidas em Altamira para participar de um evento com um título inacreditável (“Seminário Mundial contra Belo Monte”) conseguiu bloquear o acesso aos canteiros da usina. Pouco depois, ocorreu uma greve de trabalhadores, tratada com simpatia raramente vista em lutas sindicais. Foi seguida de outra, em março de 2012. Três meses depois, os escritórios da usina foram invadidos e depredados. Ocorreram a seguir três paralisações e bloqueios importantes nos meses seguintes. No fim do ano, um ataque terminou com a destruição de equipamentos e veículos estacionados nas redondezas.

O calendário da obra, que prevê o ligamento da 24ª e última turbina em janeiro de 2019, irá colocar uma lição e um desafio. A lição é que Belo Monte é produto de uma combinação específica de fatores favoráveis, que permitiu vencer uma visão paralisante das questões ambientais e abertamente retrógrada do ponto de vista do desenvolvimento. Num país que trava uma luta árdua para construir sua soberania, a oferta cada vez mais abundante de energia não só é condição de acesso à civilização do século 21 – mas é a única forma de a eletricidade caber no orçamento dos brasileiros mais pobres. É por isso que a luta pelo desenvolvimento econômico se combina com a visão de uma sociedade mais justa.

Por muitos anos ainda o país terá necessidade de ampliar a produção de energia – e a versão hidrelétrica não só é uma das mais limpas que se conhece, do ponto de vista ambiental, mas também uma das mais eficientes, nas condições brasileiras. (Vários estudos dizem que seus reservatórios são úteis até para minimizar o efeito estufa.) A demanda dos brasileiros por energia tem crescido em ritmo acelerado, numa base de 4,3% ao ano, sendo 4,4% nas residências, 3% na indústria e 6,4% em outros setores. Numa atividade que não pode ser improvisada nem admite cálculos de véspera, o Plano Decenal de energia prevê a entrada em funcionamento de quatorze novas hidrelétricas de potencial variado, capazes em ampliar em 40% a oferta de energia a partir de 2018. Não vamos nos iludir, portanto. Há mais demanda e novas usinas no caminho – e novas guerras pela frente. Teremos uma eleição presidencial no meio do caminho e ninguém sabe como a economia irá se portar até lá.

Na verdade, os conflitos já começaram e envolvem a construção de uma nova hidrelétrica, São Luiz de Tapajós, também no Pará. O estudo técnico desta usina já está terminado e prevê uma obra com 60% do potencial de Belo Monte. Em 2012, a Câmara de Deputados aprovou uma Medida Provisória com definições favoráveis à usina, que foi planejada com cuidados equivalentes a proteção ambiental, inovações técnicas e medidas de contrapartida à população local. Mas o leilão para dar início aos trabalhos, previsto para o final de 2014, foi cancelado um dia depois de ter sido anunciado e não se sabe quando irá acontecer. O argumento para o cancelamento envolve a disputa em torno de área onde reside uma população de cinco centenas de indígenas. Sempre levando em consideração os direitos dos primeiros brasileiros, essa situação define um impasse já conhecido. Luisa Braga Ferreira, coordenadora socioambiental da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia, Abiape, adverte num artigo sobre São Luiz de Tapajós que “estamos diante um projeto que poderá atender 20 milhões de residências, contribuir para o desenvolvimento econômico do país e assegurar vida digna a milhões de brasileiros, que também são valores de ordem constitucional e inequívoco interesse público. Casos como este estão ocorrendo com frequência cada vez maior e o que se discute, em último grau, é a prevalência dos direitos das minorias vis à vis o interesse público de atendimento à demanda crescente de energia no país.”

http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/206624/Licença-de-Belo-Monte-deve-ser-celebrada.htm

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