domingo, 22 de fevereiro de 2015

Xi Jinping: O Presidente da China de cabeça levantada

 

 

Por Ana Gomes Ferreira

Quanto mais poder tem Xi, mais segura de si está a China. É o homem certo para o momento, histórico, em que a superpotência demográfica e económica deixa cair uma timidez mais estratégica do que real e diz o que quer do mundo

No ano passado, na cimeira de Beidaihe — a estância em Hebei onde todos os anos, no Verão, os novos líderes se reúnem com as gerações mais antigas para discutirem linhas de acção — 28 seniores pediram que Xi Jinping se mantivesse no poder até 2027. Em vez de dois mandatos de cinco anos, disseram, teria três.

Fizeram-no, lia-se na Asian Review, para cair nas boas graças do líder. Mas fizeram-no também porque estão fascinados com este seu Presidente. Há escassos dois anos no cargo, Xi irradia esperança e personifica a realização de um sonho antigo. O sonho da China poderosa, gloriosa, respeitada. Uma China de cabeça levantada.

Não se sabe como reagiu Xi à proposta dos 28 velhos líderes e revolucionários. A lei chinesa não proíbe terceiros mandatos, também não especifica que dois são o limite; foram os órgãos mais poderosos do Partido Comunista Chinês (PCC) que fixaram em dez anos a duração de cada liderança. O que se sabe, e a Asian Review não se coibiu de o lembrar, é que quando Xi Jinping olha para a História chinesa tem um governante favorito. Não é Deng Xiaoping, o “pai” das reformas e com quem se diz que quer ser comparado; tão-pouco é Mao Tsetung, cujos métodos autocráticos se comenta que está a copiar. É o imperador Xuan (91-49 a.C.), que restaurou a dinastia Han.

Há uma citação, atribuída a Xuan, que o Presidente chinês proferiu em mais do que uma ocasião: “As pessoas que têm bom senso mudam para se adaptar ao momento que se vive, as pessoas sábias mudam as leis e os regulamentos para responderem às circunstâncias que estão a viver.” Há quem leia nela o sinal de que Xi não se importará de revogar a lei não escrita dos dez anos de mandato.

Em pouco tempo — foi nomeado em Novembro de 2012 e eleito em Março de 2013 — Xi Jinping ganhou uma reputação extraordinária. Uma reputação de homem tão sapiente que parece infalível — como infalíveis eram os imperadores, elevados da condição humana por desígnio dos deuses.

Internamente, não é só um grande líder, é um dos maiores — a taxa de aprovação do Presidente é de 92%, segundo os números divulgados no final do ano passado pelo jornal independente de Hong Kong South China Morning Post. No exterior, a admiração por Xi também é imensa. Um inquérito feito em 30 países pelo Ash Center for Democratic Governance and Innovation da Universidade de Harvard (EUA), para medir o grau de familiaridade e de aprovação a dez dirigentes mundiais, colocou Xi na frente, com 8,7 pontos em dez possíveis (o Presidente russo é o segundo, com 8,1 pontos e o chefe de Estado americano, Barack Obama, surge em terceiro lugar, na casa dos 7 pontos).

O Presidente pintado por um agricultor, Yang Chuanye, do condado de Jishan, na província de Shanxi REUTERS/Stringer

Dentro e fora da China, Xi Jinping, um homem de estatura imponente, sorriso nos lábios e muito carisma — diz quem o conhece —, tem um ascendente cada vez maior. E parece ter cada vez mais poder.

Nos meios jornalísticos não há dúvidas em caracterizar Xi como um Presidente todo-poderoso — os títulos a tratá-lo por imperador são muitos e a revista Economist até o vestiu como tal, mostrando-o numa capa sentado num trono. Nos meios académicos debate-se outra dimensão da equação — tenta-se perceber como são, hoje, os mecanismos que levam à tomada de decisões na China.

E se por um lado é consensual que Xi concentra nas mãos muito poder — porque é o chefe de todos os departamentos estratégicos, o das reformas económicas e sociais (que dava, até aqui, protagonismo aos primeiros-ministros), o da política externa, das forças armadas, da segurança, incluindo a cibersegurança —, por outro também se explica que, há dois anos, ocorreu uma mudança estrutural na cadeia de decisões.

“Temos de perceber que o tipo de liderança assente na ideia do ‘homem forte’ acabou. O consenso e a liderança colectiva marcam a política chinesa actual. O papel de Xi não é tão influente como se pensa, mas é ele quem tem de lidar com as diversas facções no partido e nos órgãos, e é ele quem tem de encontrar equilíbrios na tomada de decisões”, explicou ao South China Morning Post Zhiqun Zhu, do instituto chinês da Universidade de Bucknell (EUA).

O consenso ainda é necessário, pelo menos à superfície, para as iniciativas políticas mais importantes, como as reformas estruturais sistemática"

Timothy Heath, especialista em Defesa

Num ensaio na revista The Diplomat, Timothy Heath, especialista em Defesa do grupo de análise Rand Corporation, diz que se assistiu ao declínio do Comité Permanente, que era o órgão mais poderoso do Partido Comunista Chinês, aquele que tomava de facto as decisões. Há dois anos, este órgão passou de nove para sete membros. Era aqui, diz Heath, que aconteciam os conflitos ideológicos, era aqui que aconteciam os choques entre as várias facções do partido; guerras internas que começavam logo na composição do grupo, formado sobretudo por homens apadrinhados pelos mais influentes personagens das facções. O consenso significava, muitas vezes, grandes lutas de interesses.

“O consenso ainda é necessário, pelo menos à superfície, para as iniciativas políticas mais importantes, como as reformas estruturais sistemáticas. (...) Em termos relativos, porém, a capacidade de os membros do Comité Permanente mudarem a direcção geral das políticas está cada vez mais reduzida". Para a maior parte das directivas, o que realmente importa é o grau de consenso dentro da burocracia do partido, nas organizações que compõem o Comité Central, como o departamento central de organização (de quem dependem as nomeações), o comité executivo, o centro político de pesquisa ou a escola do partido.

Xi, neste contexto, e sem pôr em causa o poder que exerce de facto, é a face visível de uma nova ordem interna que se tornou necessária num momento crucial e crítico da história da China e da história do partido.

A reestruturação do modelo de tomada de decisões teve um propósito, explicam os académicos: recuperar valores perdidos. Xi tem sido o porta-voz dessa corrente e por mais do que uma vez o ouviram falar na “superior metodologia intelectual” do partido que, explica, é “a única correcta para unir e liderar o povo e alcançar o rejuvenescimento nacional”.

“Xi chegou ao poder num momento em que a China, apesar do seu sucesso económico, estava politicamente à deriva”, diz Elizabeth Economy, do Council on Foreign Affairs. O partido estava (está, ainda) minado pela corrupção e pela falta de ideologia. Perdeu credibilidade numa altura em que os avanços económicos produziram alterações tão profundas na população que se adivinhavam convulsões sociais.

A guerra contra a corrupção foi o primeiro sinal visível desse renascimento da metodologia do partido. Uma guerra usada como arma política na contenção das facções — foram assim entendidos os caso de Bo Xilai, uma figura em ascensão na hierarquia presa em 2012 e, depois, expulsa do partido e acusado de corrupção, abuso de poder e assassínio e condenado a prisão perpétua; e o caso de Zhou Yongkang, antigo chefe da segurança, homem forte da facção política ligada ao petróleo e o primeiro antigo membro do Politburo a ser preso e acusado de corrupção. Na aplicação da estratégia, nem os militares foram poupados — Xu Caihou, que está preso, fora vice-presidente da poderosa Comissão Militar Central.

A guerra contra a corrupção já levou, em dois anos, tantos membros do partido para a prisão como durante toda a década anterior. O efeito na opinião pública foi poderoso, com os chineses a viverem uma etapa de reconciliação com o partido que os governa — os movimentos de contestação existem, mas é preciso não esquecer que são de facto minoritários num país com 1357 milhões de pessoas.

“Estamos a realizar uma campanha de educação dentro do partido para garantir que não se afasta do povo. Para isso, estamos a fazer duas coisas: criámos um sistema de vigilância para assegurar que não há aproveitamento individual e que o partido serve o povo; estamos a punir severamente os corruptos. Os líderes do PCC não podem ser corruptos”, disse ao PÚBLICO, no Verão do ano passado, o vice-presidente da China, o antigo professor primário Li Yuanchao. O vice-presidente também explicou o papel de Xi Jinping neste contexto: “Ele é o chefe do partido”, sendo que o partido tem como “exclusiva” missão fazer “o que é melhor para o povo”.

Xi com Obama na Califórnia, em Junho de 2013. A diplomacia de Pequim está apostada no “renascimento” chinês Jewel Samad/AFP

O PCC deu a Xi Jinping uma tarefa prioritária, manter a hegemonia ameaçada do partido, essencial para manter a harmonia social e o progresso económico — também ameaçado com a corrupção, um mal transversal, que afecta a estrutura do topo à base.

Sem esta hegemonia e unidade, a China não poderá cumprir o seu desígnio — o “renascimento”. Li Yuanchao explicou que o partido toma decisões com grande antecipação. Sugere que Xi Jinping estava, há muito, pré-escolhido para ser o líder desta fase tão importante.

Em parte, foi pelas suas características pessoais — o líder do “renascimento” teria de ser carismático, teria de gerar simpatia e admiração. Teria de andar pelo mundo, expondo-se como há muito não se via. Xi contrasta com os dois antecessores, bastante mais discretos, Hu Jintao e Jiang Zemin. De Xi, conhece-se até a mulher (a segunda), a elegante Peng Liyuan, cantora e directora da academia artística do Exército do Povo que acompanha o marido em viagens internas e ao estrangeiro — pela primeira vez, a China tem uma primeira-dama, apesar de, nos últimos meses, Peng andar mais afastada da ribalta.

Xi personifica também uma mudança de paradigma na política externa. Acabou o período, longo, do baixar da cabeça — foi Deng quem pediu aos chineses qualquer coisa como “escondam os talentos e esperem a vossa vez”. Sejam discretos, portanto.

A maior potência demográfica que já é também a maior potência comercial quer acumular outro título: a maior potência.

A China, explicam os sinólogos, percebeu que uma política externa discreta lhe trazia muitas limitações, sobretudo quando precisava de (re)criar o seu espaço de influência regional. “Começaram a aplicar uma política de grande potência, igual à dos Estados Unidos”, disse ao jornal francês Le Monde Jean-Pierre Cabesten, da Universidade Baptista de Honk Kong.

Xi Jinping também a definiu como “diplomacia de grande país... com características chinesas”.

O lema de Pequim é agora “agir para obter resultados”. E ainda que não tenha tido resultados físicos, diz Cabestan, pontuou no capítulo psicológico quando avançou com pretensões territoriais no Mar da China, ameaçando países que, noutra era, já fizeram parte da esfera de influência de Pequim, mas que fugiram a esse controlo na década de 1930-40 — Vietname, Filipinas, Malásia. O Japão, esse, será sempre um eterno inimigo, o “agressor”, como lhe chamou o vice-presidente Li Yuanchao.

A diplomacia é uma parte vital do “renascimento” chinês e marcar território — quebrando o equilíbrio favorável aos Estados Unidos criado com a II Guerra e que a Casa Branca pretendia reavivar com a anunciada “viragem para a Ásia” de Barack Obama — foi a fase mais visível, porque foi a mais agressiva e, por isso, a mais mediatizada.

Noutros pontos do globo, as tais “características chinesas” vão avançando. Em África, a China troca serviços por petróleo, na América Latina investe em terras, na Europa multiplica os investimentos de grande dimensão, na Ásia cria uma nova balança comercial que joga a seu favor e retira importância a países como a Indonésia, a Austrália ou a Coreia do Sul.

Ao mesmo tempo, Xi anuncia novos acordos comerciais regionais, anunciou a criação de um banco de investimentos para a Ásia-Pacífico e propôs uma “nova rota da seda” — ligando a China à Ásia Central, à Rússia e à Europa. Xi falou nos investimentos necessários em redes viárias e como nada disse sobre como será possível construí-las em regiões instáveis, algumas mergulhadas em conflitos armados, abriu caminho à especulação: está a China disposta a começar a intervir, à imagem dos Estados Unidos?

O mundo é suficientemente grande para todos nós"

Xi Jinping

É, por enquanto, uma pergunta sem resposta, com os analistas a ousarem apenas dizer que a China se tornou um país cheio de confiança mas que ainda é pouco confiável. Xi Jinping sabe que tanta ambição provoca inquietações. E fala em não intervencionismo. Na Austrália, no ano passado, Xi Jinping respondeu a um jornalista que escreveu que a China é um gigante na multidão e que o mundo inteiro está à espera de ver como se comporta, dizendo: “O mundo é suficientemente grande para todos nós.”

Se já é um lugar-comum dizer-se que o século XXI pertence à Ásia, é mais inédito ouvir os analistas dizerem que o ano de 2015 será crucial para se perceber se a China conseguirá cumprir o desígnio a que se propôs — há que não esquecer que, nesta nova ordem internacional, todas as decisões que forem tomadas em Pequim afectarão o mundo inteiro, não apenas um país.

Este é o ano da consolidação do equilíbrio interno e da clarificação da diplomacia. Xi Jinping representa esta ambição e este risco. Não é um senhor todo-poderoso, mas é sobre ele que assenta o “renascimento” da China — como sobre um homem só assentava a velha China imperial, gloriosa e vulnerável aos erros humanos. E é por isso que, no que parece ser uma contradição, o especialista australiano em política externa Mark Beeson diz que, de alguma forma, a China está “outra vez vulnerável à síndrome do mau imperador”.

Xi não é um senhor todo-poderoso, mas é sobre ele que assenta o “renascimento” da China BOGDAN CRISTEL/Reuters

http://www.publico.pt/mundo/noticia/o-presidente-da-china-de-cabeca-levantada-1685781

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