segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A pobreza infantil espanhola pelos olhos de Encarni

 

por Inés Benítez, da IPS

foto Encarni y su prima en la habitación de su casa 629x472 A pobreza infantil espanhola pelos olhos de Encarni

Estefanía lê na cama enquanto Encarni faz as tarefas escolares sobre uma mesa de seu pequeno quarto. Esta menina de Málaga, de 12 anos, é um dos rostos da pobreza infantil na Espanha, que segundo novo informe do Unicef afeta 36,3% dessa faixa etária da população. Foto: Inés Benítez/Envolverde/IPS

Málaga, Espanha, 3/11/2014 – “Gostaria de ter uma casa grande e que minha família não tivesse que pedir comida nem roupa”, disse à IPS Encarni, de 12 anos completados recentemente, na pequena moradia que compartilha com cinco familiares em um bairro pobre da cidade espanhola de Málaga. De olhos castanhos, fronte grande, cabelo castanho e liso à altura dos ombros, Encarni é um dos rostos da pobreza infantil na Espanha, onde a taxa cresceu 28,5% desde 2008, segundo um informe divulgado, no dia 28 de outubro, pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

O documento As Crianças da Recessão, que analisa 41 países considerados ricos, afirma que o índice de pobreza infantil na Espanha passou de 28,2% em 2008 para 36,3% em 2013, e inclui este país entre os “mais afetados” pela crise econômica junto com Chipre, Croácia, Grécia, Irlanda, Itália e Portugal.

Quase todos os dias no meio da tarde, Encarni acompanha sua mãe e sua tia que vão buscar comida no Er Banco Güeno, um restaurante social dirigido pelos moradores do bairro La Palma-Palmilla, que ocupa há dois anos o prédio de um antigo banco e fornece as três refeições a pessoas necessitadas. “Trabalhei na construção até o começo da crise em 2008, quando fui demitido”, contou à IPS o padrasto da menina, Antonio Delgado, que desde então não conseguiu emprego e faz de tudo, “desde recolher sucata até vender em pequenos mercados”.

De rosto enxuto e dentes maltratados, Antônio faz pequenos consertos que lhe rendem alguns poucos euros por dia, valendo-se de uma máquina de soldar e outra para encher pneus, colocadas no corredor de sua casa, um andar que dá acesso à rua e em cuja entrada estão penduradas diversas gaiolas com pássaros. Encarni contou que sua mãe, Inmaculada Rodríguez, trabalhou durante dois meses cuidando de uma pessoa mais velha, mas foi demitida.

Na Espanha, com 47 milhões de habitantes, o desemprego afeta cerca de 23,6% da população ativa, mas na comunidade de Andaluzia, onde fica Málaga, sobe para 35,2%, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE). “Gosto de ir à escola. Sobretudo para fazer ginástica”, disse a menina com sua voz doce, embora se entristeça por às vezes se sentir rejeitada por seus colegas, porque “me viram entrar no restaurante social e pedir comida. Mas não ligo”, acrescentou esboçando um sorriso.

Há alguns dias sua tia e seus três primos se mudaram para outra moradia próxima, mas, até então, na casa de Encarni conviviam 11 pessoas. Encarni dormia na parte de cima de um beliche com sua prima Estafanía, um ano mais velha do que ela, e na de baixo sua tia Ana María e seu filho Juan José, de nove anos. Ao lado, em um berço dormia seu outro primo, Ismael, de dois anos e meio.

A mãe de Encarni, seu padrasto e outros quatro familiares dividiam o resto da casa, que tem apenas um banheiro pequeno, ao qual se chega depois de se passar por um varal onde a roupa lavada é seca por um ventilador perto da cozinha. Estefanía e Ismael sofrem de epilepsia, contou Ana María, que está desempregada e mostra à IPS a caixa onde guarda vários medicamentos que os filhos devem tomar diariamente.

“Sua casa é grande?”, perguntou Encarni à repórter da IPS, enquanto acariciava seu cão, de pelo negro chamado Gordo. E depois questionou: “De onde os ricos tiram o dinheiro?”.

O informe Iguais: Acabemos com a Desigualdade Extrema. É Hora de Mudar as Regras, lançado no dia 30 de outubro pela organização humanitária Oxfam Intermon, revela que 1% dos espanhóis mais ricos têm tanto quanto 70% de todos os cidadãos. E o que é ainda mais dolorido é que durante a crise os multimilionários mais do que duplicaram no mundo, passando de 793, em 2008, para 1.645 em 2014. Isto, segundo a Oxfam, reflete que a recessão foi benéfica para aqueles que mais riqueza acumulam.

historia de Encarni 3 A pobreza infantil espanhola pelos olhos de Encarni

Um dos blocos de La Palma-Palmilla, bairro pobre de Málaga, no sul da Espanha, onde vivem Encarni e sua família. Foto: Inés Benítez/IPS

A Espanha, em particular, é um dos 34 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE) onde mais cresceram as desigualdades entre ricos e pobres durante a crise financeira, segundo seu informe Panorama da Sociedade 2014. Entre 2007 e 2010, a renda de 10% da população espanhola mais pobre caiu 14% ao ano, em média, enquanto em outros países da OCDE diminuiu 5% no México, Grécia, Irlanda, Estônia e Itália, e em nenhum chegou a 10%.

Encarni quer ser juíza quando for adulta, mas agora se conformaria em poder se “vestir bem” e ir comprar mais no supermercado. “Tudo o que tem aqui nos foi dado porque meus pais não têm dinheiro suficiente”, explicou, apontando a roupa dobrada no armário, os pacotes de arroz e lentilha em uma prateleira no quarto e até a mochila que ganhou de uma vizinha para ir à escola, onde almoça diariamente de forma gratuita por causa da falta de renda familiar.

Encarni gosta de pular corda, saltar cama elástica, brincar na gangorra perto de sua casa e que seu padrasto a leve na bicicleta. Também gosta de comer doces, cantar e dançar com sua prima Estefanía, que neste verão desfrutou pela primeira vez de um banho no mar, apesar de viver a poucos quilômetros da praia. “A água tem gosto de sal”, observou a menina à IPS.

De cada cem crianças em risco de pobreza na Espanha, 25 estão na região da Andaluzia, 15 na Catalunha, dez em Valência, dez em Madri e o restante nas demais comunidades autônomas, segundo dados do INE, analisados no informe Meninos e Meninas, os Mais Vulneráveis em Todas as Comunidades Autônomas, da organização Educo. O novo estudo do Unicef alerta que 2,6 milhões de crianças caíram na pobreza por causa da crise econômica nos países mais prósperos, por isso o número total de crianças pobres no Norte industrial subiu para 76,5 milhões.

Com o cabelo solto recém-penteado, sentada em uma cama perto da janela, enquanto a televisão apresenta notícias sobre os últimos escândalos de corrupção neste país, Encarni abraça seu pequeno primo Ismael, que segura um pedaço de pano nas mãos, e espera que caia a noite. Envolverde/IPS

Nenhum comentário:

Postar um comentário