domingo, 16 de fevereiro de 2014

Teoria da EVA mitocondrial e a utilização do DNA mitocondrial em estudos genéticos

 

1. Diferentes tipos celulares

Estudos de microscopia eletrônica demonstraram que existem fundamentalmente duas classes de células: as procariontes (pro, primeiro, e cario, núcleo), cujos cromossomos não estão separados do citoplasma por membrana, e as eucariontes (eu, verdadeiro, e cario, núcleo), com o núcleo bem individualizado e delimitado pelo envoltório nuclear. Os seres vivos que têm células procariontes são denominados procariotas. Esse tipo celular é que constituem as bactérias. Já as células eucariontes originam os seres eucariotos que englobam uma gama imensa de seres vivos, desde as leveduras até o homem (Figura 1). As diferenças entre esses dois tipos celulares não ficam limitadas apenas à presença do núcleo. Outras diferenças citoplasmáticas são encontradas o que confere à célula eucariota uma riqueza de membranas, que formam compartimentos que separam os diversos processos metabólicos graças ao direcionamento das moléculas absorvidas ou produzidas nas próprias células.

Figura 1. Representação esquemático da origem das células eucariontes.

2. Origem  e funções das mitocôndrias

A teoria endossimbiótica foi proposta pela primeira vez na década de 60 pela cientista Lynn Margulis. Durante muitos anos a teoria foi alvo de duras críticas por parte de outros biólogos. Entretanto, com o levantamento de diversas evidências empíricas e com a publicação do livro intitulado “A simbiose na evolução celular” a teoria de Margulis começou a se popularizar. Atualmente ela é amplamente aceita pela comunidade científica.

Segundo esta teoria, há milhares de anos atrás, as mitocôndrias e os cloroplastos das células eucariontes teriam sido organismos procariontes de vida livre. Estes organismos foram então englobados (através do processo de endocitose) por células maiores com as quais estabeleceram uma relação de simbiose (Figura 2). As mitocôndrias seriam o resultado da endocitose de procariontes aeróbios e os cloroplastos de procariontes fotossintetizantes (possivelmente cianobactérias). O evento aconteceu provavelmente, há 2.000-2.500 milhões de anos o que gerou uma relação de simbiose entre as duas células onde a célula englobada proporcionava energia à célula hospedeira, enquanto esta a protegeria do meio externo.


Figura 2. Representação esquemática da teoria da endossimbiose.

Uma série de evidências apoiam a teoria da origem endossimbiótica das mitocôndrias e dos cloroplastos. Em primeiro lugar, as mitocôndrias e os cloroplastos possuem seu próprio genoma e seu DNA é capaz de se autoduplicar. O genoma destas organelas é formado por uma molécula de DNA circular. Diferentemente do DNA nuclear, o DNA destas organelas não se encontra associado a um tipo de especial de proteína chamado de histona. Esta organização é muito mais próxima daquela encontrada em bactérias do que em organismos eucariontes. Da mesma forma, a estrutura de outros componentes encontrados em tais organelas é mais parecida com a estrutura de componentes procariotos do que dos eucariontes. Mas esse processo de endocitose seria tão simples de ser realizado?

Os tamanhos dos genomas das bactérias envolvidas nesse processo de simbiose não são conhecidos. No entanto, o número de genes das bactérias atuais variam de menos 1.000 a mais de 6.000, com uma média de 2.500 genes. A nova célula fusionada poderia ter tido duas moléculas de DNA, cada uma com cerca de 2.500 genes.

Algumas das proteínas necessárias à fabricação das mitocôndrias e dos cloroplastos são produzidas exclusivamente pelo DNA destas organelas e não pelo DNA contido no núcleo das células. Ou seja, apenas células que contenham estas organelas são capazes de fabricar novas mitocôndrias ou cloroplastos. Além disso, mitocôndrias e os cloroplastos possuem sua própria maquinaria para a síntese de proteínas. Sendo que esta maquinaria é muito similar àquela encontrada em organismos procariontes.

As mitocôndrias exercem uma importante função nas células: são elas que realizam o importante processo de respiração celular. Na respiração celular, ocorre um processo de reações químicas, através das quais a célula obtém energia para suprir suas necessidades vitais. As reações químicas que ocorrem no processo de respiração celular são dinamizadas por enzimas do ciclo de Krebs (encontradas no centro do fluido mitocondrial) e enzimas da cadeia transportadora do elétron (localizadas no forro interior da membrana). As mitocôndrias usam o oxigênio e a glicose oferecidos pela célula, transformando-os em energia na forma de ATP (adenosina trifosfato) que é devolvida para célula. É durante a respiração celular que são produzidos os radicais livres (Figura 3).


Figura 3. Representação esquemática do processo de respiração celular que ocorre nas mitocôndrias

3. DNA mitocondrial (mtDNA) e sua utilização em estudos genéticos

A tecnologia do DNA recombinante melhorou tanto a precisão da análise genética que, como uma ferramenta, a genética está encontrando aplicações em campos de investigação inteiramente novos.

O DNA mitocondrial escapa á mistura genética que ocorre na fecundação. E, como geralmente não entram mitocôndrias paternas (derivadas do espermatozoide) no óvulo, a informação genética mitocondrial é transmitida exclusivamente pela mãe. Nos seres humanos, o mtDNA contém 37 genes, os quais são essenciais para a função mitocondrial normal (Figura 4). Treze destes genes codificam enzimas envolvidas na fosforilação oxidativa/respiração celular. Os genes restantes codificam ácido ribonucleico (RNA) de transferência (tRNA) e RNA ribossomal (rRNA), que são primos químicos do DNA. Estes tipos de RNA estão envolvidos no processo de síntese de proteínas.

As mutações ocorridas no DNA mitocondrial são comuns a uma determinada população analisando-as, os cientistas obtém uma etiqueta bioquímica dessa população. Entretanto, várias doenças estão associadas a mutações nos genes do mtDNA, dentre elas:  diferentes tipos de câncer (mama, cólon, estomago, fígado, leucemia e linfoma), diabetes, neuropatias ópticas, neuropatias dentre outras.


Figura 4. Representação esquemática do DNA mitocondrial (mtDNA) e seus genes.

A aplicação da genética molecular à antropologia tem produzido um resultado inesperado. Dentro desta linha podemos destacar a descoberta da tão conhecida Eva Mitocondrial.

4. Teoria da Eva mitocondrial

A surpreendente e controversa teoria da Eva Mitocondrial, demonstrada há alguns anos, é atualmente aceita por muitos cientistas, e novos dados experimentais deram suporte a essa conclusão inicial. A hipótese da Eva Mitocondrial sugere que o grau de similaridade genética entre seres humanos (ou outras espécies) pode ser quantificada pelo número de mutações dentro do  DNA mitocondrial.

Os genes de uma criança são aproximadamente igualmente herdados do pai e da mãe. O rearranjo genético que ocorre a cada geração sucessiva dá ao feto duas cópias de cada gene de uma escolha de quatro possíveis dentre os genomas dos pais. Esta reprodução sexual junta com recombinação genética aumenta a diversidade da resposta genética em relação a pressões evolucionárias. Entretanto, a herança do DNA mitocondrial é uma exceção à reprodução sexual. De singular na teoria da Eva Mitocondrial é a descoberta de que o mtDNA é herdado apenas da mãe, não havendo nenhuma contribuição do pai na época da fertilização. Quando o espermatozoide penetra o óvulo, não há entrada de mitocôndria. Apenas o DNA da cabeça do espermatozoide contribui para a formação do zigoto. A única fonte de mtDNA do zigoto é materna. A mãe passa o seu componente de DNA mitocondrial para suas filhas e filhos. Os filhos não podem passar sua informação genética adiante; a informação pode ser passada apenas pelas filhas.

Investigadores de Berkeley usaram estudos de DNA mitocondrial para traçarem ancestrais humanos, contando com o fato de que o pouco apreciado DNA mitocondrial é passado de geração a geração somente por fontes maternas. Eles retiraram amostras de DNA mitocondrial de 147 diferentes indivíduos escolhidos dos tantos grupos antropologicamente diversos quanto possíveis dentre a população da Terra. Aborígenes australianos, índios americanos, negros africanos, europeus do Norte, e outros foram todos amostrados. O mtDNA de cada indivíduo foi submetido a um extensivo mapeamento por técnicas de biologia molecar. Uma análise comparativa das mutações em cada amostra foi feita. Os pesquisadores de Berkeley formaram uma árvore evolutiva, assumindo que, quanto menores as diferenças mutacionais entre dois indivíduos mais proximamente relacionados eles estavam.

O resultado surpreendente foi  que todas as ramificações da árvore se juntaram em um tronco rapidamente. Rapidamente significa que usando uma taxa assumida para as  mutações no mtDNA, todos os indivíduos testados poderiam ser considerados tendo uma mãe comum africana em um passado evolutivo recente. Estes investigadores concluiram: “Todos estes mtDNAs partiram de uma única mulher que se postula ter vivido 200.000 anos atrás, provavelmente na África. Todas as populações examinadas, exceto a população africana, têm origens múltiplas, implicando que cada área foi colonizada repetidamente.” O ancestral africano foi chamado Eva Mitocondrial pela imprensa. A descoberta de uma convergência na árvore evolutiva a um único ancestral materno comum que viveu na África sub-Saárica há apenas 200.000 anos é sem dúvida dramática.

Muitas potenciais falhas  nessa teoria têm sido extensivamente debatidas. Os 200.000 anos estimados ao ancestral comum poderiam ser um erro significante se fosse assumido que a taxa de mutação para o mtDNA estivesse errada. O DNA mitocondrial possui uma taxa de mutação mais alta do que o DNA nuclear, porque a mitocôndria não possui o mecanismo de reparo extensivo do DNA, presente no núcleo da célula. Mesmo assim a taxa de mutação não pode estar errada por mais de um ou dois fatores. A seleção dos 147 indivíduos pode não ser suficiente para mostrar outras diversas tendências evolutivas nos seres humanos. Em adição, uma ramificação da árvore evolutiva testada usando o mtDNA é perdida quando ocorre uma geração em que apenas nascem filhos. Alguns antropólogos se incomodam com o fato das gravações fósseis da evolução do homem não se igualarem a este curto espaço de tempo sugerido pelas gravações do DNA. Mesmo assim, muita discussão e os novos dados dos últimos anos sugerem que o modelo está basicamente correto. A análise de mtDNA para o estudo da evolução em muitas espécies está sendo genericamente aceita. A tecnologia do DNA recombinante se tornou uma ferramenta aceita e altamente quantitativa para os estudos em antropologia, evolução e ecologia.

Recentemente a renomada revista Nature publicou um trabalho de pesquisadores da Oregon Health & Science University, nos Estados Unidos, que usaram uma polêmica técnica de fertilização in vitro para produzir embriões com material genético de duas mulheres e um homem. A abordagem, que substitui o DNA mitocondrial defeituoso encontrado em um óvulo humano por outro saudável, pode ajudar a prevenir doenças genéticas de origem materna no futuro.

A equipe de pesquisa, liderada por Shoukhrat Mitalipov, conseguiu substituir o genoma mitocondrial com defeito por outro de uma doadora, livre de mutações danosas. Com isso, os cientistas obtiveram um óvulo capaz de produzir blastócitos (embriões de até cinco dias de vida) e células-tronco embrionárias normais. Segundo os pesquisadores, o bebê que nascesse deste óvulo teria todos os traços genéticos de sua mãe biológica, mas levaria o DNA mitocondrial da doadora e estaria livre das doenças que, de outro modo, seriam herdadas de sua progenitora.

No trabalho, os cientistas usaram 64 óvulos doados por mulheres saudáveis. Após a fertilização, 13 deles se desenvolveram normalmente e deram origem a embriões em estágios iniciais. Os cientistas dizem que não pretendem usá-los para gerar uma criança. A ideia dos cientistas é que, no futuro, as mulheres que carregam mutações genéticas usem seus próprios óvulos, com um pequeno percentual do material genético de outra pessoa, para gerar filhos saudáveis. Ensaios anteriores realizados com macacos utilizando a mesma técnica deram origem a animais saudáveis.

A equipe acredita que esta pesquisa, juntamente com outros esforços, pode abrir caminho para futuros ensaios clínicos em seres humanos. Embora esta forma de terapia ainda não tenha sido aprovada nos Estados Unidos por envolver o uso de óvulos humanos, o Reino Unido afirma que considera seriamente seu uso para o tratamento de pacientes humanos com risco de doença baseada em mitocôndrias.

Frente a isso será que além dessa EVA mitocondrial poderiam ter existido outras? Seria possível a existência de um ancestral comum mais próximo entre diferentes populações? Até que ponto o mtDA ou até mesmo a mitocôndria poderiam contribuir para um retardo do processo de envelhecimento? A manipulação do mtDNA para selecionar embriões saudáveis seria eticamente viável?

Busquem conhecimento!!!

Profa. Dra. Paula Lima

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