quinta-feira, 7 de abril de 2011

Fernando Molica: Dois é bom, três é demais

A história do casal paranaense que decidiu abrir mão de uma de suas trigêmeas é muito chocante, mas não deixa de fazer um certo sentido. Afinal, de uns tempos para cá, tudo parece ter ficado programável e descartável. A mesma ciência que viabiliza uma gravidez impossível pelo método natural ajuda a criar a expectativa da perfeição. A aventura humana, que inclui o milagre da reprodução, ficou mais previsível e segura, como a emoção programada de uma montanha-russa.
Na prática, incorporamos às nossas vidas conceitos da evolução tecnológica. Modernos aparelhos de TV nascem velhos, somos induzidos a trocá-los logo. Começamos a não saber o que fazer com celulares e computadores que passamos a considerar obsoletos após pouco tempo de uso. O amor também não resistiu à lógica do descarte: na dúvida, é mais fácil trocar de parceira ou parceiro.
As mudanças são muitas. O sexo da criança só era conhecido depois do nascimento; há uns trinta anos que isso ficou pra trás. As clínicas de reprodução acenam com promessas que envolvem escolha do sexo, da cor dos olhos e dos cabelos. Num futuro próximo, a busca de um corpo ideal será aplicada aos embriões, como se limitações e imperfeições não fossem características humanas. Pesquisas apontam para a possibilidade de detecção precoce de doenças que poderiam atingir um bebê muitos e muitos anos depois. Pelo jeito, em breve poderemos corrigir esses problemas ainda no útero — ou, simplesmente, interromper a gestação de alguém que, dali a tantas décadas, poderá se tornar um fardo para a família. A doença é vista como incompatível com a modernidade, fica mais simples descartar quem pode trazer incômodos (o tal pai desnaturado preferiu ficar sem a neném que apresentava dificuldades respiratórias).

O pai e a mãe dos trigêmeos agiram como dois consumidores exigentes. Pagaram por um produto e não quiseram saber de problemas. Dá até para imaginá-los esfregando um exemplar do Código de Defesa do Consumidor no nariz do geneticista. Sim, é cruel, mas trata-se uma crueldade compatível com uma lógica perversa tão presente em nosso tempo. Além do mais, desprezar e maltratar crianças não é novidade entre nós. Um país que oferece escolas e hospitais ruins, que desvia dinheiro da merenda e convive com o trabalho infantil e com a exploração sexual de crianças não tem lá muita moral para condenar o casal do dois é bom e três é demais.

Fernando Molica é jornalista e escritor. | E-mail: fernando.molica@odianet.com.br

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